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Blog da Turma C de Cinema e Rádio e TV do 1° Semestre de 2010

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Lembrar é resistir

Por Mario Kim


Durante o regime militar, entre 1940 a 1983, o prédio da Estação Pinacoteca sediava o Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo – Deops/SP, palco de repreensão. Naquele mesmo local, torturas e prisões eram executados. Havendo ainda parte desse espaço preservado, a exposição recria o ambiente das celas e corredores. Em cada quarto, um aspecto daquela opressão é estetizado ou memorado por objetos, documentos, material fílmico e relatos de ex-prisioneiros. Apesar do local estar limpo e arrumado para a exposição, o ambiente é claustrofóbico – estreito, com pouquíssimas brechas da luz natural externa, não exigindo ao visitante nenhum prodígio imaginativo para sentir um pouco a agonia dessa opressão que mancha um período controverso de brutalidade e modernização. No salão da entrada, um mural com um cronograma histórico brasileiro do século XX, com os principais acontecimentos político e sociocultural para refrescar a memória do visitante.

Logo ao lado, juntamente com o memorial, há uma exposição complementar de desenhos e pinturas do Elifas Andreato – As cores da resistência. O artista ainda vivo que ilustrou inúmeros cartazes, discos, livros e material da imprensa, enquadra-se entre os principais pilares de inquietação visual do modernismo brasileiro, não menos que Cavalcanti, Tarsila, Portinari, Segall, entre outros. Mesmo sem a solenidade da moldura de um quadro, seu grafismo urbano de traço vanguardista lembra também características clássica renascentista e do realismo mais recente de Coubert. Seu conteúdo se reveste de densidade simbólica e notável expressividade humana. Pixinguinha, Cartola, Vinícius de Moraes, Toquinho, Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina, são alguns dos nomes que gozaram do talento desse artista na estréia de capas de discos.

Todo esse caráter dissonante, na política ou na arte, teve o seu contexto histórico contra um objeto claro e identificável de um sistema de valores. Hoje, o ilustre elenco dessa resistência de meio século atrás, enfim, alcançou o poder. Nosso presidente é o grande símbolo do operário que despertou e inflou o espírito de protesto ante o dominador. Na literatura, tivemos a antropofagia; na cinematografia, o Cinema Novo com o retrato da pobreza; na cultura popular musical, a Tropicália, a Bossa Nova, o rock da Jovem Guarda. Hoje, toda essa composição discordante descansa confortavelmente em um pedestal elitista. A nossa jovem democracia, afinal, assentou em um terreno aparentemente livre de mordaças para engatinhar e passar a andar com os próprios pés.

Pois então, qual será o sentido de resistência hoje, quando o sistema já encontra-se demasiadamente maduro para incorporar, sem maior alarde, qualquer subversão? Sendo o inimigo o capital, qual seria o tom dessa voz desafinada que depende da própria articulação mercadológica para se fazer audível? Vivemos em um cenário onde é difícil reconhecer o próprio objeto de refutação, que encontra-se atrás de alguma máscara indecifrável em forma de entidade. Para quem carrega um fardo inevitável do espírito de oposição, resta inventar ou criar o seu próprio diabo, para em seguida, espetá-lo com a lança, uma brincadeira solitária.

Seria a ruptura do presente século juntar-se à Cuba, China, Irã ou Coréia do Norte, para então ser visto como inimigo antidemocrático pelo dedo “pastoral” do tio Sam e companhia? O nosso querido Lula, no momento, tenta apartar qualquer queda de braço entre potências, valendo-se do seu carisma que repercutiu internacionalmente. E dada a sua pretensão bem intencionada em pisar deliberadamente em um chão de ovos, parece que ele levou muito a sério tais aplausos de “ação afirmativa” da sua figura mítica, que ninguém conte a ele. Mas está aí, o brado do velho líder sindical.

Mesmo restando alguns pontos remanescentes de dissidência ao redor do globo, a exposição profetiza um testamento de óbito. O espírito de resistência parece encontrar um aposento adequado - uma sala de museu climatizada, rodeada de segurança, onde visitantes bem comportados podem resgatar, com requinte de romantismo uma antiguidade exótica. “Lembrar é resistir” diz o mural - mas só lembramos de algo quando este é esquecido, e se é esquecido, trata-se de um passado morto. Ao menos, essa exposição não conta com uma generosidade privada, é coisa do governo mesmo, com entrada franca e tudo – é coerente.


Estação Pinacoteca
Memorial da Resistência de São Paulo
Largo General Osório, 66 – Luz
CEP 01213-010 – São Paulo – SP
Telefone: 55 11 3335 4990
Email memorialdaresistencia@pinacoteca.org.br

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